Amores, tempestades e o Bloco da Rama
Eleutério era um
exemplo de cidadão cabofriense bem sucedido: herdeiro de uma pequena
rede de lojas de eletrodomésticos, casado há dez anos com a mesma
mulher, dois filhos irriquietos e um dos principais animadores do
então ativíssimo Bloco da Rama, Leléu – como era chamado pelos
colegas – tinha tudo que um jovem senhor de seus trinta e seis anos
poderia querer.
Mesmo com o velho ainda
a frente dos negócios, sua idade avançada fazia com que Leléu
atuasse, na prática, como o verdadeiro dono de tudo. Da admissão de
funcionários à compras e reposição de estoque, em tudo estava o
dedo do jovem centralizador. Mesmo em suas horas de folga sua
liderança era sentida, como na organização das saídas da grande
paixão de sua vida – o Bloco da Rama.
Tinha Leléu três
parceiros inseparáveis no Bloco, aos quais delegava o pouco que
sobrava de sua febril atividade organizadora. Ele e Nandinho – um
dos parceiros – varavam madrugadas em intermináveis reuniões à
portas fechadas na casa de Carlinhos, o outro parceiro e –
convenientemente – solteiro e com uma casa disponível, e isso
tornara-se rotina tão forte que nem mais incomodava Marieta, sua
mulher.
Aos comentários de que
o Bloco da Rama era um amontoado de bichas enrustidas procurando
derivativo, o trio sempre respondia com um sorriso de desdém e a
categórica afirmação de que seriam tão machos que sequer
precisariam provar isso.
* * *
Ás vésperas do
carnaval do ano da graça de Nosso Senhor de 1975, após uma lotada
sexta-feira trabalhando na matriz de sua loja, entendeu Leléu de
investir sua macheza na exuberância glútea de sestrosa mulatinha, a
qual atendia na seção de rádio-vitrolas e sobre cujas nádegas o
patrão já assestara sua pontaria desde que a mesma fora admitida.
Uma formidável
tempestade de verão se aproximava, com trovões roncando, relâmpagos
iluminando o lusco-fusco do entardecer e ensejando conveniente
desculpa de Leléu para segurar a mulatinha após o expediente, sob
pretexto de cobrir com lona algumas caixas que estavam no estoque,
para evitar que molhassem.
A bem da verdade Luzia
– a mulatinha – não rechaçava as investidas de Leléu. Afinal
ele era jovem, rico e bem poderia ser um senhor que a ajudasse, nesta
dura e difícil senda da vida, a montar sua própria casa. Sorria,
lançava olhares e mesmo confidenciava intimidades como sua
virgindade em seus dezessete anos. Pois naquele entardecer
tempestuoso ela sentia-se criativa e sugerira uma alternativa obscena
para desafligi-los da angústia descerebrada dos quadris.
Tal sugestão foi como
prêmio de loteria para Leléu, antigo em cobiçar as nádegas
rotundas da pequena saliente: apressadamente jogou-a de quatro por
cima das caixas de papelão do estoque e ali mesmo satisfizeram-se.
* * *
Terminada a aflição,
lembrou-se Leléu de sair de cima de Luzia e fumar um cigarro.
Entretanto, o pior acontecera: amigos já o haviam prevenido contra
os perigos da sodomia e agora, ao que tudo indicava, seus piores
pesadelos tornaram-se realidade – estavam, ambos, engatados tal
como dois cachorros em despudorado acasalamento.
Tudo tentaram, todas as
posições, óleo de máquina de costura, cutucões na barriga da
pobre que – cada vez mais nervosa – desesperava-se em gritos e
xiliques histéricos, e nada funcionava.
Com suas partes cada
vez mais edemaciadas e sentindo dores somente suspeitadas no inferno,
decidiu Leléu cobrir a sí e a pobre desgraçadinha com tosco e
imundo lençol, entrar em seu carro com ela no colo e dirigir até o
hospital, última possibilidade de salvação, apesar do escândalo.
Como se o próprio Deus
tivesse a firme resolução de castigá-los por seus pecados, a
imensa tempestade que começara junto com suas libidinagens descia
com fúria divina por sobre toda a cidade, tornando quase impossível
distinguir um palmo que fosse, à frente.
Tudo tem seu lado bom,
pensou Leléu: esta mesma tempestade também serviu para acabar com a
luz de toda a região, permitindo que alcançassem o pronto-socorro
sem serem incomodados – eis que nenhum doido se atreveria a sair ás
ruas debaixo do verdadeiro dilúvio que se abatia sobre Cabo Frio.
Mas a ira de Deus não
se detém com a simples escuridão. No próprio hospital Leléu –
conhecidíssimo na cidade – logo foi avistado por enfermeiras
companheiras de carnaval e médicos amigos do Bloco, os quais
rapidamente tornaram pública sua miserável e humilhante condição.
Não fosse pouca tal
desgraça, tão forte foi a tempestade que todo o teto mais a fachada
de sua loja desabaram, sob o peso de toneladas de água, acionando um
escandaloso e comentado trabalho do brioso Corpo de Bombeiros.
Feito antiga
brincadeira do “telefone sem fio”, às notícias do pobre
entalado somaram-se à do desabamento de sua loja, provocando uma
romaria de amigos, amigas, parentes e mesmo autoridades, ao hospital
em busca de notícias.
- É verdade que Leléu
ficou preso nos escombros da loja?, perguntava um.
- Pois é, parece que
ele e mais uma funcionária estavam trabalhando, e tiveram de ser
separados com serra elétrica!, exagerava outro.
Lívido, Carlinhos
entrara no hospital sem se importar com mais nada e berrando, alto e
bom som:
- Leléu! Eu sabia!
Sempre desconfiei de seus olhares pro Nandinho!
Toda aquela multidão
teve sua curiosidade desperta pela insinuação, e cobrou explicações
do pobre rapaz, acuado contra a parede. Sem ter como resistir, abriu
o verbo:
- Eu, Nandinho e Leléu
nos reuníamos em minha casa fingindo que era pra tratar dos assuntos
do bloco...
- E dai?, urraram
todos.
- E daí que a gente
ficava juntos, os três...mas ele me trair e ficar só com o Nandinho
escondido na loja, é muita sacanagem!
Mais sacanagem ainda o
pobre deve ter achado, ao se deparar com as bisonhas figuras de Leléu
e Luzia enrolados em lençóis, cabisbaixos e apressados, rumando de
mãos dadas em direção ao carro.
Sem se fazer de rogado,
o médico que os acompanhara satisfez a curiosidade popular
detalhando, à sordidez possível, tudo o que os apetites irritados
da turba quis saber.
* * *
O casal, na verdade,
nem chegara a entrar no carro e já voltara ao hospital. Marieta os
esperava na chuva, armada com a mesma pá que minutos antes estava
usando para desafogar – sozinha – sua casa do lamaçal que
infiltrara, e os moera à golpes.
* * *
O pai de Leléu vendeu
a loja a uma rede carioca de eletrodomésticos, logo após seu filho
mudar-se – desquitado – para São Paulo.
A família de Leléu –
ex-mulher e filhos – igualmente saíram da cidade e ninguém nunca
mais soube deles.
Nandinho e Carlinhos
casaram-se informalmente, e foram morar no Arraial do Cabo,
trabalhando como assessores de Luzia – que elegeu-se vereadora pelo
novo município, logo após sua emancipação.
Walter Biancardine