Nasci e me criei ao feitio normal, tal e qual tantos outros meninos da Zona Sul carioca; nem pobre de marré, nem rico de comprar felicidade.
Mal chegado á este mundo, em dois meses veio a Revolução de 64 e foi sob ela que conheci a vida, entre as ruas úmidas de Copacabana e as férias tórridas em Cabo Frio.
Nestes tempos – verdes anos, diria um poeta – andava-se descalço os três quarteirões que separavam minha casa da praia. Uma rua Santa Clara que mais era um túnel, acobertada pelos pudores de tantas árvores que mal via-se o sol. Natural que nos meio-fios crescessem limo e que, eventualmente pequenos animais dos matos, dos morros pouco habitados, virassem tapetes peludos no asfalto.
Minha casa tinha uma só televisão e nela, poucos canais – 4 ou 5 emissoras, não mais.
Pedíamos ligações interurbanas á telefonista e ficávamos a esperar. Dava pra ir ao bar comprar cigarros e voltar, mesmo que fosse meia noite.
O rush tinha hora e local marcados, uma das poucas pontualidades cariocas. Andávamos de vidros abertos, capotas arriadas ou mesmo sem capacetes. Quem sabe, dependurados em caçambas ou montados em traseiras de buggies – nas horas difíceis, o meio era pendurar-se na escada do ônibus pois chegávamos onde queríamos e nem pagávamos passagem.
Mas o regime era militar e não se escolhia o Presidente da República.
Falando nele, foi com uma ponta de dor no coração que me despedi das barcas da Cantareira, a dos automóveis, que cediam lugar à maior ponte do mundo, à época: a Ponte Presidente Costa e Silva, ligando o Rio á Niterói. Uma obra que chamou atenção do mundo, em um tempo em que tudo parecia dar certo: tri-campeonato da Seleção no México, Transamazônica, Ponte.
Podíamos ir e vir á vontade, de dia, de madrugada, mas certamente com um gostinho de saudades da velha Cantareira. E como viajávamos de madrugada!
Aliás, como no velho samba, tínhamos “a madrugada como companheira”: noitadas que começavam nas batidas do Oswaldo, na Barra, e terminavam no Cervantes – sol nascendo – em Copacabana. A madrugada era nossa, a noite era nossa, a cidade era nossa, e retribuíamos com um bairrismo que beirava o paroxismo apaixonado.
Mas o regime era militar, e não se escolhia governadores – ao menos, o do Rio, não.
É de se notar que no relato já havia eu adquirido jeito e cabeludice de rapaz feito – e isso significava os primeiros pileques e seus vexames, como largar o carro numa vaga esdrúxula na rua, com vidros abertos, e acordar ressaqueado e temeroso de que houvessem levado o caríssimo toca fitas Roadstar, que eventualmente permanecia em sua santa paz.
Conversávamos nas esquinas. O lugar da turma era na rua, e lá ficávamos, sem ter o que fazer, até que o sono vencesse, o assunto acabasse ou o sol nascesse – o que acontecesse primeiro. Bando de fedelhos, pelos seus 16, 17 anos, a perambular pelas madrugadas e plenamente seguros, pois os bandidos tinham, por estes loucos anos, medo da polícia.
Mas o regime era militar, e não se podia falar mal do governo na TV – bem como também não se podia falar palavrões nem mostrar bundas e pintos, afinal uma criança poderia estar na sala.
Tempos loucos, que não entendiamos. Panfletos clamavam por liberdade, e nós nos perguntávamos: “somos então uns oprimidos?”
Vi amigos crescerem, estudarem, arranjarem bons empregos ou partirem para o comércio, com a cara e a coragem. A rua era uma extensão de nossa casa e o bairro nos pertencia. Saíamos e voltávamos à hora que bem nos aprouvesse, e para onde nos desse na telha – mas os folhetos e cochichos nos bares era sempre “Queremos Liberdade!”.
Chicos e Caetanos nos acenavam uma Terra Prometida maravilhosa, com a tal liberdade, que não sabíamos o que era pois “havíamos nascido sob ditadura”.
Resmungávamos contra a inflação, mas no final das contas, com as aplicações, ficavam seis por meia dúzia. E o país crescia, alucinadamente, até que vieram os anos oitenta.
Tempos de anistia, de fim da censura, de volta dos exilados e, coincidentemente, violência e estagnação econômica – a década perdida.
Nunca pediram tanto a tal liberdade e ela, finalmente, veio.
Hoje, temos instituições democráticas, um governo civil e eleições diretas para todos os níveis, bem como o fim da censura.
Mas tenho medo de sair às ruas, pois não são mais minhas.
Mais gente morre por bala anualmente, que em toda guerra do Vietnan, e nada podemos fazer, pois o desarmamento – dos honestos – nos deixou desprotegidos e a polícia é sempre vista pela mídia como criminosa, enquanto meliantes são vítimas.
Mas temos um governo civil e eleições diretas – cujas urnas são impossíveis de confiar e nem ao menos submetidas a uma auditoria.
Hoje meu Rio desmaravilhou-se, e sucumbe ao domínio do crime, do poder paralelo e arbitrário – tal qual uma ditadura, só que criminosa – sem que tenhamos como protestar ou escolher outra vida.
Um celerado sociopata decide se devo viver ou não, segurando um fuzil de assalto, a cada sinal de trânsito ou via expressa, enquanto tento esquecer as madrugadas, pois são tempos de toque de recolher.
Uma nação inteira é saqueada, sangrada até a falência, sem que possamos remover ou prender os responsáveis, pois são os mesmos que clamavam por “liberdade” e agora nos acusam de golpismo.
Mas agora temos eleições diretas para todos os níveis.
Poucos se atrevem a protestar, pois a censura deu lugar á patrulha ideológica e á condenação ao ostracismo – e neste oblívio não há arte nem poesia.
Mas agora a censura acabou.
E podemos apreciar peitos, bundas, pintos e toda a diversidade de genitálias, preferências, taras, orientações sexuais bem como músicas que endeusam traficantes, que louvam a piranhice como “mulheres decididas” e, felizes, nos emburrecemos, embrutecemos, decaímos à padrões jamais vistos – mesmo nos países mais ridicularizados no planeta.
E ninguém clama mais por liberdade, pois não sabemos o que fazer com ela.
Era ISTO que nos prometiam, naqueles tempos?
Walter Biancardine