As mãos crispadas do vereador Reinaldo
sobre a tribuna pontuavam seu discurso inflamado, naquela sessão da
câmara, em pleno verão.
Vermelho, suando em bicas por cima de um terno desenxabido, vociferava imprecações contra uma indecência que, no seu entender, estava para ser permitida na sua Cabo Frio tão ciosa da moral e bons costumes:
- É o que eu digo, meus senhores! Essa autorização que a Prefeitura concedeu aos organizadores dessa Parada Gay só pode ser brincadeira! É brincadeira de mau gosto! Imaginem vocês indo às ruas com seus filhos, com suas crianças, e vendo esses anormais desfilando suas taras para todo mundo ver! Onde vamos parar? O que mais esse governo vai permitir?
Um cortejo de palmas secundou sua fala, animando-o. Enxugando-se com um lenço, prosseguiu:
- Todos aqui
conhecem minha história! Sempre fui um cristão, temente ao Senhor
Jesus; tenho minha família, minhas crianças e sou casado com a
mesma mulher há 20 anos! E agora eu vou ter de aceitar que um
afeminado divida as mesmas ruas que meu filhinho de nove anos e o
contamine com seus costumes bizarros? Eu não sou homofóbico, mas
morrerei tentando garantir meu direito de manter-me, a mim e minha
família, longe de coisas que a Bíblia já diz que são
antinaturais!
É próprio do povo confundir gritos com eloquência e por isso o vereador foi enormemente aplaudido, ao final de seu discurso. Saiu do plenário ovacionado, em êxtase pelo grande tento eleitoral que acabara de marcar contra seus adversários políticos, apressando-se a embarcar em seu carro, cujo motorista – seu sobrinho de 19 anos – mantinha a porta aberta para que ele entrasse.
Este sobrinho, verdade seja dita, já dera o que falar aos seus adversários. Acusaram o vereador de nepotismo ao empregar parentes na Câmara e mesmo na contestação de aliados havia maledicência, insinuando que o rapaz nem ao menos parente seria. O mote das críticas, entretanto, ainda era restrito ao suposto nepotismo e ao exacerbado moralismo de seu discurso, apontado por muitos como hipócrita e carola.
* * *
O vereador Reinaldo era um exemplo de sucesso para os cabofrienses: começara a vida pobre, vendendo picolé na praia, até que empregou-se em uma loja de materiais de construção. O dono, um senhor muito bondoso, logo reconheceu seus méritos e em pouco tempo fez do rapazola seu sub-gerente. Com a morte do comerciante, entretanto, o jovem Reinaldo viu-se obrigado a procurar outro emprego, já que os olhares inamistosos da viúva não recomendavam sua permanência por lá.
Em pouco tempo o rapaz já estava novamente empregado e, mais uma vez, sua dedicação e esforços o conduziram à uma ascensão meteórica em uma grande incorporadora e construtora, cujo dono patrocinou, inclusive, estudos e habilitação como corretor de imóveis.
E no ramo Reinaldo fizera sua fortuna, chegando a tal ponto de destaque na vida da cidade que lançar-se à uma candidatura na Câmara foi mera e natural consequência.
Por esta mesma época casara-se e agora, ao assumir o quinto mandato, não mudara a sua essência: benevolente, há dez anos criara uma ONG destinada a patrocinar os estudos e o desenvolvimento profissional de garotos pobres que, como ele, precisaram de ajuda no prepararem-se para a vida.
Todos eram diretamente aproveitados por suas empresas, mas o caso de Betinho era diferente: empregara-o na Câmara como seu assessor particular e motorista, coisa que muito desagradara alguns adversários egoístas e que nunca compreenderam o sentido da benemerência sem segundas intenções.
Agora, ainda suarento de seu discurso inflamado, pediu à Betinho ao volante:
- Acho que seria bom irmos para a chácara em Araruama...
E no mesmo banco de trás do seu carro importado, protegido pelos vidros negros impenetráveis, começara a desnudar-se revelando graciosa lingérie vermelha, de rendinhas.
* * *
Aquela vez, entretanto, não fora como as outras.
Reinaldo percebera o nítido distanciamento de Betinho – ensimesmado, frio, desanimado.
- O que está havendo? Te conheço, sei que tem algo errado, perguntou o vereador enquanto deitava sua cabeça sobre o colo do rapaz.
A revelação fez o político por-se de pé em um único salto: Betinho queria se casar. E com uma moça, que conhecera no cursinho.
- Mas como pode isso? Você já não tem sua moto, seu carro e até sua casa, que te dei? De papel passado e tudo? O que mais você quer? Isso não faz parte do nosso acordo!
O rapaz fincou o pé em sua decisão, acrescentando mesmo que resolvera se converter à religião de sua noiva – sim, noiva! - e que tudo entre eles deveria terminar ali, com Betinho ficando com tudo o que ganhara, obviamente, já que os bens estavam em seu nome.
- Traidor! Você é um traidor, berrava Reinaldo pelos corredores da ampla casa da chácara.
A discussão tomou o resto da noite, que deveria ser só de arrufos, e deixou um arrasado Reinaldo à porta de sua casa bem cedo, pela manhã. Sua mulher nem mais perguntava o que teria acontecido; há muito ela já compreendera que a vida de um político era mesmo assim – sem hora nem local, a política consome!
* * *
Purificado e salvo em nome de Jesus, Betinho resolvera não desapontar sua noiva e, como marco de uma nova vida, devolveria à Reinaldo todos os discos de DVD que gravaram. Já que o rapaz ficara com os bens, que ao menos seu antigo protetor se sentisse seguro dando um fim naqueles filmes, cujos principais personagens eram eles mesmos, e que mostravam toda a luxúria e depravação de suas noites juntos. Tanta devassidão não mais fazia parte da vida do agora crente Betinho, tornara-se um homem correto e Reinaldo que queimasse os discos, ao recebê-los.
Entretanto, por uma obra que certamente só poderia provir do Inimigo, o vereador encontrava-se no Rio de Janeiro, em viagem oficial, quando o correio bateu à porta de sua casa. Léa, sua esposa, atendeu e recebeu o pequeno volume empacotado, escrito com hidrocor por cima: “Para provar que não sou ingrato”. Tal frase, mesmo escrita por letra claramente masculina, provocaria a curiosidade de qualquer um – quanto mais a de sua mulher, que andava suspeitosa que o marido estivesse recebendo favores de empreiteiras da cidade.
Antes fosse suborno. Em choque, Léa foi hospitalizada com uma crise de hipertensão e o pacote de discos – agarrado firmemente por ela no momento da internação – foi parar nas mãos dos repórteres que por lá apareceram, alertados pelas solícitas auxiliares de enfermagem que tanto acusaram a entrada da esposa do vereador quanto a eles entregaram o embrulho.
* * *
Um estranho assalto à residência vitimou Betinho, com nove tiros na cabeça, à queima-roupa. O inquérito fora arquivado enquanto o vereador entregava metade de seus bens à ex-mulher e a outra metade à diversos segmentos da mídia local, a título de um acordo de cala-boca.
Graças as boas relações que ainda mantinha com o diretor do hospital, as enfermeiras envolvidas no caso tiveram seus contratos rescindidos, enquanto a admissão da viúva de Betinho era providenciada.
Reinaldo – agora apelidado de Gaynaldo pela oposição – ainda manteve-se como um calado e bastante ausente vereador até o fim da legislatura, quando retirou-se da política para dedicar-se à corretagem autônoma de imóveis, em Rio das Ostras.
Walter Biancardine