Gislaine dos três verões
Uma pré adolescente encantadora, dificilmente um turista
– dos milhares que visitavam a cidade a cada verão – a suporia tão mal nascida nos baixios do Morubá, vizinha de esgotos a céu aberto e criações de galinhas. Corpo esguio, olhos azuis e pele alva, era uma edição revista e melhorada dos rudes e vermelhos caiçaras que um dia povoaram o cabo.
Enquanto criança, denunciava sua pobreza pelos vestidinhos de chita rotos e desbotados, que esvoaçavam em suas loucas e desabaladas correrias com a criançada da rua, atrás de pipas, bolas e piões. Sua beleza pueril passou quase menosprezada até seus onze ou doze anos, quando o faro apurado da molecada começou a querer sua companhia para outras brincadeiras que não pique bandeira, futebol ou búlica.
Apartada da fome nervosa de seus antigos amigos pela mãe, Gislaine – tal como uma borboleta em seu casulo – agasalhou sua beleza durante longos quatro anos até que, premida por vaidade tímida mas que ainda assim acarretava despesas, arranjou um emprego graças aos auxílios de um tio torto, visitante assíduo de sua família e que dedicara especial afeição à menina-moça durante todos esses anos difíceis de reclusão.
Sua família, entretanto, nunca entendeu sua mudança após começar a trabalhar: toda a afeição que Gislaine aceitava de seu tio transformou-se em um nojo inexplicável, e passou a cada vez mais evitar ficar em casa, sempre com desculpas de solicitações do trabalho ou da escola.
O primeiro verão
Esplendorosa em seus dezesseis anos, o verão de 1984 descobriu Gislaine nas finas areias do cabo.
Hordas de admiradores perseguiam-na, em busca do privilégio machista do débút com a donzela da restinga. Garotos locais e turistas se revezavam em suas impertinentes solicitações e convites mal formulados, e a todos a resposta era um inseguro e tímido “não”, acompanhado de uma inocente lambida em seu sorvete.
O seu “não”, junto com a pouca idade, impunham um respeito mal contido à sanha depravada dos seus solicitantes:
- Verão que vem ela vai estar uma uva, diziam, lambendo os beiços e arrepanhando as partes.
E assim seguiu o verão de Gislaine, em seus divertimentos acanhados no Fliperama ou passeios com as coleguinhas na rua do hotel Malibú – olhando os turistas em seus carrões, rindo e sonhando com o príncipe encantado que, certamente, as levariam para uma vida de sonho e luxo.
Entretanto, como é da vida acontecer, um dia Gislaine compreendeu todo o seu poder ao sofrer o constrangimento de uma declaração de amor de seu patrão na loja de doces, que se ajoelhou, chorou e prometeu montar uma casa para ela e ajudar toda sua família, se a menina fosse só dele.
Sua recusa transformou-se em demissão, tal como outras três antigas amadas do comerciante, que foram sumariamente dispensadas após o devido uso. Ela, ao menos, foi embora por negar seus favores.
O segundo verão
No verão seguinte Érica – a antiga Gislaine rebatizada pelas amigas – estava, de fato, uma uva.
Sabia que tinha uma arma entre as pernas. Seu tio a cumulara de favores durante anos e mesmo seu antigo patrão, por mais ordinário que fosse, prestava-se como seu capacho, na crença de que a demoveria em favor de ser sua propriedade.
Conseguira um emprego em uma boutique que, além do salário razoável, permitia que a beldade usasse algumas das roupas lá vendidas. Bela, bem vestida e devidamente protegida pela maldade recém-descoberta de seu poder libidinoso, apostou Érica todas as suas fichas naquele verão.
Não frequentava mais Cabo Frio, trocando suas praias pelas areias bem mais promissoras de Armação dos Búzios onde se misturava, sem destoar, com as belas moças cariocas, francesas, italianas e argentinas que lá banhavam e exibiam seus cobiçados e – agora sabia – caros corpos.
Um rapaz do Rio de Janeiro, jovem, bonito e rico, a levou um dia para passear de lancha. Tirou fotografias e disse que, breve, ela estaria desfilando nas passarelas. Se não alcançou de imediato o eixo Milão-New York-Paris, as fotos renderam-lhe prontamente convites para desfiles locais, onde donos de comércio da região, misturados a turistas cobiçosos, muito desfrutaram de sua companhia em troca de promessas de fama, sucesso e glamour.
Érica agora era requisitada, jovem e bela; o mundo estava a seus pés e ela não se misturava.
Seus antigos amigos não alcançavam seu grand monde superior, rarefeito em sofisticação, e nem de longe teriam dinheiro para frequentar os mesmos lugares onde – só lá – ela seria encontrada.
Durante um ano inteiro viveu uma vida de festas, passeios em carros importados, restaurantes caros e promessas – muitas promessas, tantas quantas foram seus amantes. Chegou mesmo a viver sozinha uns bons quatro meses em uma luxuosa cobertura, de conhecido magnata da construção civil, enquanto seu romance durou.
Porém, em um rápido balanço daquele ano tão louco, de seu conseguira apenas uma pequena motocicleta, presenteada por um empresário com quem tivera um curto e tumultuado caso. As noites sem dormir empregadas em festas, os excessos, as bebidas, orgias e incessantes solicitações começaram a cobrar seu preço: às portas do verão seguinte, Érica já se olhava no espelho preocupada com seu viço, que se perdera.
O último verão
Seus olhos eram agora de um azul aguado, desbotados e vermelhos. Sua fina pele caiçara denunciava o castigo do sol, em rugas precoces que só realçavam seus cabelos de palha, queimados e sem brilho.
Tantos jantares e drinks mudaram sua silhueta, acrescentando quilos e culotes onde jamais houveram, e impondo à sua renitente vaidade o uso de cintas e calças cada vez mais apertadas.
Sentia que perdera as condições de disputar atenções em Búzios e voltara, como filha pródiga, a frequentar Cabo Frio. Nos inevitáveis reencontros com os antigos amigos, disfarçava o saber-se usada com uma simplicidade de alma há muito perdida:
- Cansei daquela confusão. Eu nem escutava o que me diziam, com toda aquela música alta. Por isso que agora prefiro barezinhos assim, escondidos e sossegados. Pelo menos a gente pode conversar, e é isso que importa, não é?
Os barezinhos, escondidos e sossegados, eram a trilha do despenhadeiro de seus sonhos: cada vez mais escondidos, cada vez mais simples, obrigavam Gislaine – Érica pertencia a um outro mundo – à esforços quase incoerentes para justificar seu ostracismo.
Os empregos eram crescentemente difíceis, levando-a à uma série de casamentos que a sustentaram ainda alguns poucos anos. O desrespeito dos homens pelas suas formas, sempre mais flácidas e maiores, invariavelmente terminavam em pancadas e privações.
Rendeu-se, um dia, à realidade. O mundo odeia a beleza e felicidade, Érica estava morta e ela, com a vida enxertada por uma esperança que não lhe pertencia, saltara direto da infância para a velhice.
Nunca chegou a saber se Érica seria a vida real e Gislaine o pesadelo, ou se Gislaine era seu destino e Érica apenas um sonho.
Esperanças mortas, vive hoje em companhia de seu tio torto – entrevado em uma cadeira de rodas, mas ainda solícito – e é atendente em sua barraca de caipifrutas na entrada da favela, juntamente com a mulher dele.
De seu passado, glorioso e breve, guarda apenas fotografias amareladas e um escondido caso com a pobre moça, companheira de trabalho, que a segue e ampara como cão fiel.
Walter Biancardine