quinta-feira, 30 de agosto de 2012



Carro novo

Não entendia muito de automóveis, mas queria a todo custo um igual aos que via, a cada verão, nas mãos dos turistas que desfilavam pela cidade.
Em um religioso ritual diário, peregrinava pelas inúmeras agências de automóveis da cidade em busca de seu sonho, passaporte para um mundo melhor e sex appeal que o conduziria, diretamente, aos braços de mulheres inalcançáveis.
A liturgia quase não variava. Olhava cobiçoso os bólidos, segurava infantilmente o sexo e perguntava:
- Quanto custa esse BMW aqui?
- Oitenta e cinco mil reais, mas dá pra quebrar um pouco, respondia o vendedor observando sua bermuda cargo, sua camisa sem mangas, seu chinelo de dedo e sua bicicleta.
Em qualquer agência que fosse, a indagação sobre o sonho sempre despencava para a realidade. De carro em carro, afundava de reluzentes Mercedes-Benz, Jaguar, Land Rover ou Cherokee para modestos Fiat Uno, Gol bolinha e até mesmo Brasílias e Chevettes mais em conta.
Mais de um ano durou sua busca. Mais de um ano de cobiça e pinto repuxado por cima da bermuda. Tornou-se mesmo conhecido dos vendedores, e um deles conseguiu-lhe uma pechincha:
- Esse carro é coreano, mas as peças são todas de Monza! E tem kit gás!
O pobre olhava o carro, ávido, e quis fechar negócio a todo custo. Na verdade tratava-se de um cansado Daewoo, marca desconhecida mas o que importava era seu tamanho e aspecto: grande, quem olhasse até pensaria ser um Audi. Verdade que a cor roxa estava já queimada e opaca, os pneus eram remoldados e pequenos demais para o carro, faltavam alguns frisos, o ar condicionado não funcionava, volante sem capa de buzina, bancos puídos mas tinha insufilme e um CD player. E tinha kit gás!
O pobre vendedor enfrentou uma maratona para financiar-lhe o sonho: inventou comprovante de renda, residência e mesmo uma conta falsa em banco, mas conseguiu 36 meses de prazo, sem entrada, e prestações que tomariam dois terços de seu salário de mil reais como encarregado em uma obra.

* * *
De posse de seu sonho, uma mudança operou-se no novo e feliz proprietário do veículo. Primeiramente comprou um pesado e grosso cordão de prata falsa, seguido por portentosos óculos escuros que mascaravam sua insegurança em um ar arrogantemente viril. Logo após, presenteou-se com o mais caro aparelho de telefone celular que encontrou, embora mal soubesse compreender quais funções teria, além do óbvio falar. Roupas novas também foram necessárias – apesar de seguir fiel à receita malemolente tropical do bermudão cargo e camisas sem manga, tão em voga na Baixada Fluminense há anos.
Tanta despesa afetou o orçamento doméstico e sua mulher começou a reclamar. Gastos com combustível eram diários e os carnês com as prestações de suas jóias não paravam de chegar, tornando sua companheira de 20 anos e mãe de seus quatro filhos uma reclamona insuportável.
Sua casa continuava sem embôço pelo lado de fora – segundo ele, uma esperta estratégia para não pagar IPTU – e a laje, naquele andor, jamais seria batida.
O ápice da tensão entre o casal deu-se quando o feliz proprietário do carro novo entendeu de construir um telhado à guisa de garagem, para o possante: tal foi a despesa que viu-se obrigado a recorrer à um vereador amigo para comprar um bujão de gás.
Pensou que “perdido por um, perdido por mil”, ao tomar os últimos trocados da mulher para ir tomar cerveja no bar com seus amigos e seu carrão – suas únicas felicidades na vida – quando lá encontrou sestrosa moçoila que enfeitiçou-lhe o que restara de juízo.
A partir daí foi a vertigem do precipício: estourados todos os cartões de crédito, recorria a amigos para arranjar dinheiro que pagasse seus arrufos com a mocinha, enquanto sua mulher sujeitava-se à compaixão de vizinhos e parentes para almoços e jantas dela e dos filhos.
Idade cruel, o meio século de vida em alguns homens cobra caro, quando dominado pela possibilidade do sexo moribundo; ainda mais com jovem mocinha que – provocante – oferecia seu pescocinho ao velho vampiro, para que dela sugasse o lenitivo de seus recalques: pediu para ser mandado embora de seu trabalho de quase duas décadas e, com a indenização, montou casa para a jovem – ansiado como ninho de amor onde uma nova existência de prazeres seria iniciada. Para eles, ao menos.

* * *
Endividado até os cabelos, sem emprego e sem atinar no despenhadeiro que saltara, ainda tinha o desplante diário de desfilar em seu carrão ano 87 em frente à casa de sua ex-mulher e de seus filhos, sempre acompanhado da jovem mocinha que ria sem parar – de tudo, de todos, a toda hora e por qualquer motivo. Fazia sua melhor cara de arrogante, escondido por detrás de seus óculos escuros e cordão de prata, colocava o cotovelo na porta e dirigindo com uma só mão, acelerava o veículo pela rua de chão da favela.

* * *
Aquela alegria angustiada não poderia durar muito. O pobre vive hoje de flanelinha e lavador de carros no centro da cidade, morando de favor no barracão de ferramentas de uma oficina em Campo Redondo. A risonha mocinha ficou com a casa e seu carro – mesmo com ordem de busca e apreensão – em companhia de outras quatro senhoritas tão dadivosas quanto ela, e recebendo cavalheiros ocasionalmente.
Sua ex-mulher morreu – comenta-se – de desgosto, ao cientificar-se que seus quatro filhos enveredaram pelo mundo do crime, dois estando já mortos com ela ainda em vida, outro preso e o caçula foragido.
Em Cabo Frio esta é uma história que sequer é contada nos círculos de amigos pelos botequins, de tão banal e repetitiva que é.
Tristemente, os cafajestes só são lembrados enquanto pagam.

Walter Biancardine.