domingo, 21 de fevereiro de 2016

CRÔNICAS DE DOMINGO - Um senhor que ajuda


- Graças a Deus ela tem um senhor que ajuda, senão nem sei o que seria dos seus estudos, exclamou aliviada dona Palmira, ao saber que os três últimos meses do colégio da filha – uma linda jovem de 15 anos que desabrochava em flor diante da cobiça alheia – estavam adiantadamente pagos.

Rousemar – ou simplesmente Rose – era o fruto dourado do casamento daquela pobre costureira da Vila Nova, viúva de um pescador que ninguém sabia ao certo se havia, de fato, morrido.

Seu Alberízio – o senhor que ajudava devotadamente a jovem – era um conhecido e circunspecto dono de comércio na praça Porto Rocha e, altruísta, tudo fazia para que o anonimato de sua filantropia permanecesse.

Proprietário de um armazém de aviamentos e passamanarias, não apenas custeava os estudos da jovem como também provisionava a mãe da menina com fornecimento abundante de matéria-prima para suas costuras. De fato, a vida finalmente parecia facilitar um pouco as dores de dona Palmira, agora amealhando seus trocados com as costuras e apostando na formosura da filha como o arrimo de sua velhice.

Aquele final do ano de 1966 seria, de todas as maneiras, marcante para a pequena e modesta família. Sua pequena jóia, Rose, terminaria o primeiro grau, completaria 16 anos e poderia ajudar a mãe em sua faina de costuras e arremates. Dona Palmira já ensaiava o discurso de agradecimento que faria aos pés do generoso Alberízio, quando a pequena irrompeu pela sala, decidida:
- Mãe, vou embora daqui.

A velha sentiu o teto desabar-lhe sobre a cabeça, e perguntou quase em uma expectoração:
- Como assim, minha filha? Endoidou?

-Não, o seu Alberízio me disse que quando eu completasse os estudos ele montava uma casa para mim, revelou, sem a menor cerimônia.

Palmira sentou-se em seu sofá puído, em busca de amparo. Compreendera de um só lance tudo o que se passara nos últimos dois anos; da mudança de comportamento da pequena passando pelos seus trejeitos e gostos precocemente femininos, as conversas cochichadas entre Rose e seu protetor – que supunha somente caridosos e ajuizados conselhos paternais – e sentiu-se enojada e envergonhada de jamais ter enxergado a concupiscência em tantos “colinhos” que o abastado senhor oferecia à jovem, ainda menina.

Uma surra de cinta limitou o trânsito da rapariga entre seu quarto e o banheiro enquanto, resoluta, Palmira ganhava a rua rumo ao armazém de aviamentos.

* * *

- O senhor é um homem casado, seu Alberízio! Como pode fazer isso? E com uma menina que podia ser sua filha, disparou Palmira, defronte ao balcão da loja que ficava na frente do lar do comerciante.

O até então circunspecto senhor gelou com a súbita aparição da costureira e quase desmaiou ao constatar que sua mulher, alarmada com os gritos, veio à venda para saber o que se passava.

Palmira olhou a mulher, uma senhora de idade aproximada à sua, que enxugava as mãos em seu avental e trazia atrás de sí uma pequena fieira de crianças curiosas – uma prole que ia de uns 9 aos seus 15 anos – e perdeu o ímpeto.
- Seu Alberízio, eu preciso falar em particular com o senhor!

* * *

Arrependera-se daquela conversa. Arrependera-se mesmo de ter sentido alguma piedade da mulher do negociante, dos seus filhos, completamente inocentes da depravação que minava seu lar, feito infiltração dos piores esgotos da alma. 

Realmente, arrependera-se de tudo ao constatar que – na prática – aquele seríssimo senhor era agora proprietário de sua filha, um cafetão em trajes sociais cujo único interesse teria sido preservar uma libido decadente, alimentando-a de mocinhas cada vez mais jovens e que porventura já houvessem nascido sem o sentido da decência em suas almas.

Sim, porque não há concubinato com menos de dois culpados. Agora Palmira sabia que, por razões que só Deus entenderia, sua pequena filha sempre estivera disposta a trocar a virtude pelo conforto, desde que aprendera a traduzir as razões de tanta gentileza do velho senhor, e isso mal saída da infância. Na cabeça suja da pequena, pensava Palmira, que mal haveria em deixar-se apalpar se era tudo o que o velho queria? Em troca ela teria boas roupas, passeios, estudo!

Concluíra finalmente que sua filha achara a troca justa, quase uma pechincha, antes de cair ao chão vitimada por um derrame.

* * *

Quatro anos se passaram desde a morte da pobre velha. Quatro anos se passaram, nos quais a agora moça feita insistia em seu sonho de casar-se com o velho Alberízio – insinuações sempre rechaçadas a custa de piadas, brigas ou mesmo presentes caros.

Naquela véspera da decisão da Copa do Mundo, Rose encheu-se de razões cuidadosamente garimpadas entre os grãos de sua moral e bateu às portas do comércio de seu protetor. Sem a condescendência de sua falecida mãe, a moça criou um escândalo de proporções bíblicas ao provocar a expulsão do velho de sua própria casa pela sua enfurecida mulher que agora, finalmente, sabia de todo o lodaçal que corria sob seu nariz.

Assustada com as consequências avassaladoras de seus atos, escondeu-se Rose em sua casa de teúda e manteúda enquanto os comentários ganhavam a cidade, desmoralizando toda uma família, um comércio, e sem sinal de que aquilo fosse ter um fim tão cedo.

Os meses correram. Alberízio perdera o comércio para sua mulher, ameaçado pelos cunhados. 

Empobrecido, mudou-se para uma pequena casinha cujo aluguel às duras penas pagava, com seus parcos rendimentos de caseiro na mansão de um milionário carioca.

Imaginou o velho que seria a hora, então, de casar-se de fato com sua protegida e poder contar com o conforto daquela casa, que tão cara – em todos os aspectos – lhe saíra. A resposta a sua reivindicação, entretanto, fora uma debochada gargalhada. A formosa Rose era agora noiva, casaria em breve com um tenente que servia na Base Aero Naval de São Pedro da Aldeia, e que se ele não fosse embora logo, ela mandaria chamar os militares.

Alberízio terminou seus dias na mais sórdida miséria, em uma cabana nas matas do Peró, onde fazia uma pobre menina cega vender conchinhas na beira da estrada, aos turistas que passavam.

Walter Biancardine